segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Capítulo 2 – Lembranças

Annabelle
Após a estranha sensação que a ausência do Sol causara-me pela manhã cedo, não pude levar este dia como os demais. Algo estava errado e eu sabia disso. Alimentei os cavalos do barracão mais apressada e dispersa que o de comum, demorando-me um pouco mais apenas com Irina e Lill, que não me pareceram muito bem na noite anterior. Ainda assim, não era o suficiente. Limpei o estábulo sem dar a devida atenção aos cavalos, o que mais tarde, admito, pesou em minha consciência. Mesmo enquanto limpava a casa, não fui capaz de afastar a sombra e a ventania momentânea que me causaram tamanho tormento mais cedo, mas, como havia muito que fazer, tentei não pensar de mais.
Terminando as tarefas, lembrei-me da festa na vila. Não havia nem resquício de ânimo em meu corpo, porém havia prometido limpar a casa de minha tia, e, mais importante, prometera a Daniel que o acompanharia na festa. Não podia quebrar uma promessa. Não uma feita com Dan.
Sua imagem encheu minha mente. Aqueles olhos esmeralda, sempre alegres e cheios de esperança. Às vezes chegava a duvidar que Daniel fosse como as outras pessoas. Não havia um só ser que não adorasse estar em sua companhia, entretanto, ele sempre preferia estar ao meu lado. Ao lado antipática garota de longos cabelos negros, segundo Daniel, a garota mais bonita de todo o mundo.
É claro que sua opinião não era exatamente confiável quando dizia respeito à minha pessoa. Senti um aperto em meu peito ao pensar que nunca poderia retribuir o sentimento que ele tinha por mim. Carinho e admiração. Era tudo que eu sentia por Daniel. Para mim, sempre fora como um irmão mais velho, um anjo da guarda talvez, mas a idéia de imaginá-lo como homem sempre fora bizarra para mim.   
Suspirei pesadamente e peguei dois livros da estante, os únicos que ainda não tinha lido. Passei pelo pano que separava os dois cômodos e abri o guarda-roupa. Peguei, sem muita escolha, meu vestido verde com a barra dourada e a túnica negra bordada com o mesmo tipo de fio para combinar. Era provavelmente meu melhor conjunto. Coloquei, porém, somente a túnica negra sobre meu vestido branco e maltrapilho. Antes da festa, teria ainda muito trabalho.
Suspirei novamente ao notar quão monótona era a casa desde que minha mãe partira. Fechando a porta do antigo guarda-roupa virei-me vagarosamente, analisando minha pequena e solitária casa.
A madeira da cama velha rangia toda vez que eu me sentava e os remendos da coberta precisavam ser refeitos. A imagem de minha mãe costurando-os enquanto eu pulava na cama com uma panela na cabeça fez-me sorrir, ao mesmo tempo em que uma lágrima rolou pelas maçãs de meu rosto.
O armário velho era sustentado por uma pilha de madeiras quebradas, que escondiam sob si um pequeno alçapão. Abafei um riso quando as lembranças me tocaram... Quanta história poderia caber dentro dessa pequena casa?
Havia duas cadeiras ao lado do armário, uma de lado para a outra, acompanhando a parede. Sobre a encostada no armário, havia uma pequena pilha com vestidos. Dois deles em tons pastéis, um branco, um vermelho, um negro e dois azuis. Quase sorri ao pensar nos mimos... mas logo lembrei-me que eram por pena, o que me fez cerrar os pulsos. Sobre a outra havia alguns livros, porém, nas costas desta havia uma capa azul, bordada em dourado, assim como o da túnica que trajava agora.
Na cabeceira da cama, havia outra cadeira, que suportava outro livro, e uma vela apagada. Precisaria de velas novas. E de livros novos. Talvez a festa, afinal, tivesse vindo em boa hora.
Apenas duas janelas neste cômodo eram mais que o suficiente para iluminá-lo durante o dia.
Com o vestido verde em meu antebraço, afastei o lençol velho e remendado que separava os dois cômodos. Neste havia três janelas. Era a parte mais bem construída, imagino que isto se deva ao fato de que minha mãe passava a maior parte do tempo aqui. Esta lembrança não me fez sorrir.
Era relativamente grande. Com um fogão à lenha, uma mesa com duas tinas e sabão, um armário debaixo desta com panelas e cumbucas. Mais ao centro, uma mesa quadrada e conservada, apesar do árduo uso, com quatro cadeiras, de mesmo caráter, ao seu redor. Do outro lado, havia de frente para a lareira um sofá de palha revestido de grossas camadas de couro, que o fazia muito confortável. Como no outro cômodo, havia livros por toda parte.
Olhei para a parte que mais me agradava. Perto da porta havia uma estante, provavelmente o móvel mais fino da casa. Era uma estante cheia de livros, com madeira trabalhada e, em alguns pontos, trabalhada a ouro. Fora o último presente que minha tia dera à minha mãe antes que ela se fosse... Ao lado da estante, havia um alaúde. Resisti ao ímpeto de levá-lo junto comigo, e por fim decidi-me que quanto menos levasse, melhor seria.
Deixei um dos livros sobre a mesa, juntei o outro ao vestido em meu antebraço e fui à direção à porta, esta estava aberta. Parei e olhei-a. Uma velha cadeira estava na varanda, junto á um pano velho que era usado de tapete. Havia passado tão bons momentos ali... Impedi que os pensamentos se prolongassem. O aperto em meu peito já me causava grande incomodo.
Quando cruzei a porta ouvi um relinchar abafado, que quase me fez chorar. Minha companhia me esperava então me apressei.

sábado, 5 de novembro de 2011

Capítulo 1 - A vida é sonho

Noderclift, 19 anos depois.


Annabelle 
Estavam ambos, majestosos, no céu sobre mim. O verde cuspiu uma chama azulada na fera de cor marrom, que se lançou em direção ao pescoço do anterior, abocanhando-o subitamente. A criatura rugiu e sangue escuro e viscoso espirrou pelo céu manchando ambas as criaturas. O verde tentou resistir. Debateu-se. Mas a besta marrom parecia maior, e mais forte. Ainda assim o primeiro não se daria por vencido. Voou numa velocidade inacreditável em direção ao chão, passando suas garras com toda força ao redor do marrom e cravando-as, de modo que este rugiu estrondosamente.
Tanto sangue.
Eles não conseguiriam se separar, um não libertaria o outro. Mas nenhum deles morreria sozinho. Nenhum deles aceitaria a derrota.
Eles debatiam-se, tentando ferir um ao outro o máximo possível, enquanto voavam velozmente rumo ao chão. A colisão certamente aconteceria.
Então um forte vermelho alaranjado tomou conta de minha visão, mas aquilo, definitivamente, não era sangue. O calor uniu-se a estranha cor e juntos causaram-me uma sensação desagradável, porém quase habitual para mim. E o desconforto forçou meu despertar.
Abri os olhos vagarosamente, tentando evitar o choque da luz cegando-os momentaneamente.
Em vão.
Eu precisaria voltar a dormir em minha cama, caso quisesse diminuir a dor causada em meus olhos pelo Sol logo de manhã, mas a sensação de ser acordada por seu calor causava-me estranhos conforto e segurança... Era essencialmente calmo e sereno.
O céu estava claro e límpido como era de se esperar. Um azul hipnotizador, enodoado vez ou outra por claras nuvens macias e acetinadas que se desvaneciam ao passo que a leve brisa soprava calma.
Sentei-me na rede, fechei meus olhos mais uma vez e respirei fundo o ar daquela manhã. Tanta coisa a ser feita. Estiquei-me em direção a um galho um pouco mais alto, e sem folhas, onde a lamparina de gás estava pendurada e apaguei a fraca chama. Alonguei meus braços para o alto, emitindo um som semelhante a um ronronar ao espreguiçar-me, causando um leve balançar na rede. Aproveitei o impulso e, sorrindo, pulei no chão. Como sempre, ajoelhando-me para amortecer a queda.
Teria que arrumar um novo modo de ir para cama... Subir quase seis metros numa grande árvore de poucos galhos baixos não estava sendo exatamente suficiente, ou prático, mas a rede amarrada nesta altura da árvore e, na outra ponta, numa antiga árvore seca e tortuosa, me parecia a coisa mais segura fora da barraca em que eu supostamente deveria morar.
Caminhei alguns metros pela mata fechada até encontrar uma clareira, e no centro desta, a casa. Continuei andando em sua direção, ouvi relinchares ao passar ao lado de um barracão notavelmente maior que a cabana. Isso me fez sorrir. Devem estar famintos, precisaria passar ali em breve. Adentrei a casa, peguei a primeira jarra que estivesse ao meu alcance e sai novamente. Puxei um dos vestidos lavados do varal improvisado e dirigi-me ao riacho mais próximo.
**
O céu permanecia sereno sobre minha cabeça. A solidão me parecia uma companhia maravilhosa. O som da água correndo vagarosamente, dos pássaros nas poucas árvores a beira do riacho. Era tudo o que se fazia necessário.
Sabia que não haveria ninguém além de mim ali, ainda assim, olhei cautelosamente ao meu redor antes de despir-me.
O líquido era límpido, quase cintilava com o reflexo do Sol e seu azul assemelhava-se ao do céu, a água parecia tão calma que a julguei preguiçosa. Corria lenta, quase como se não quisesse se separar daquele lugar. Ajoelhei-me sorrindo e lavei meu rosto. Senti a água fria escorrer por minha testa e bochechas, e depois seu gotejar por meu pescoço. Repeti o processo duas ou três vezes, não me recordo bem, e voltei a postar-me de pé. Fechei os olhos para sentir melhor a brisa bater em meu rosto, possuía um típico e delicioso cheiro de orvalho da manhã, inspirei fundo aquele aroma, quase como se a natureza falasse comigo por meio dele. Se o fizesse, estaria com certeza sorrindo e dando-me um muito bom dia.
Entrei receosa na água fria, pé ante pé, e quando a água já batia em minha cintura, algo passou sobre minha cabeça. Mesmo que por alguns segundos, o Sol havia sido bloqueado por alguma coisa. Um arrepio percorreu minha espinha e o frio chegou antes do vento: uma lufada de ar gelado, extremamente forte, contrastando por completo a brisa fresca e suave, quebrada pela luz quente.
Fiquei imóvel esperando aquilo passar, e passou quase tão rápido como veio, deixando apenas o frio e um mau pressentimento, que permaneceram, como se cada célula do meu corpo, gritasse que havia algo errado. Não entendia o que havia sido aquilo.
Não pude me banhar calmamente. Cada gota e todo sopro pareciam-me fora do lugar. Era como se me alertassem dizendo que havia algo estranho, que algo estava muito errado. E eu sabia que estava. Tratei de lavar o vestido do dia anterior e vestir o seco rapidamente, enchi a jarra que levara comigo, e caminhei para casa, tentando afastar de minha mente aquela sensação assustadora.